O mistério do planeta vermelho
Cientistas descobrem num meteorito de Marte que caiu na Antártida o primeiro forte indício de vida fora da Terra
Eurípedes Alcântara
A notícia caiu como uma rocha sobre a comunidade científica internacional. Depois de uma fuzilaria mundial de boatos, a Nasa, agência espacial americana, admitiu oficialmente, na terça-feira passada, que seus pesquisadores acreditam estar de posse de uma evidência convincente da existência de vida fora da Terra. A descoberta, feita ao cabo de dois anos de estudos de um meteorito encontrado em 1984 na Antártida, sugere que existiu no planeta Marte, há bilhões de anos, uma fauna microscópica muito parecida com os seres unicelulares que habitaram a Terra nos primórdios da História biológica do nosso planeta. Não fosse pelo colar de dúvidas que ainda cerca alguns dos detalhes mais formidáveis do estudo da Nasa e se estaria diante da maior descoberta científica do século. Ainda é prematuro proclamar que a vida tenha surgido também em outro planeta. Nenhum grupo de pesquisadores, no entanto, munido apenas da melhor ciência, havia chegado antes tão perto de uma resposta à mais desafiadora hipótese científica de todos os tempos: estamos sós no universo?
"Estou convencido de que encontramos no meteorito sinais de atividade biológi-ca primitiva em Marte. Quem quiser que prove que estamos errados", desafiou David McKay, o geótopo do Centro Espacial Johnson, em Houston, Texas, que liderou as pesquisas da Nasa. Contestações surgiram de diversos lugares. Mesmo as vozes mais críticas, porém, admitiam que, dada a fonte de estudo da Nasa, um meteorito do tamanho de uma laranja, nenhum time científico do mundo teria feito um trabalho melhor. O meteorito foi batizado de ALH84001. A sigla o identifica como tendo sido o primeiro a ser encontrado na região de Allan Hills, na Antártida, no ano de 1984. O anúncio da Nasa espalhou ondas de choques que eletrizaram a opinião pública mundial. O presidente americano Bill Clinton apressou-se em montar o foguete da propaganda que o anúncio acendeu. "Hoje, a rocha 84001 fala conosco desde bilhões de anos atrás e milhões de quilômetros de distância. Ela fala da possibilidade de vida extraterrestre", disse Clinton, que propôs um esforço conjunto das potências espaciais para explorar intensivamente o planeta Marte ao longo desta década. O misterioso planeta vermelho já será alvo de três missões até o final do ano.
Marte ocupa um lugar especial no imaginário da humanidade. É o planeta preferido não apenas da ciência cósmica mas também dos autores de ficção científica. Ray Bradbury escolheu o planeta como a locação de suas formidáveis As Crônicas Marcianas. Ainda dá calafrios a abertura do romance A Guerra dos Mundos, de H.G. Wells, em que a humanidade aparece como um bando de micróbios cuja intimidade é devassada pela inteligência marciana. "Intelectos poderosos, frios e hostis nos observam", escreveu Wells. Quando os primeiros sinais de rádio regulares vindos do espaço foram identificados em 1967, a astrônoma Jocelyn Bell os apelidou de LGM1 e LGM2 _ sendo que LGM é a sigla em inglês para Homenzinho Verde, o popularíssimo marciano de um em cada dois filmes de ficção científica dos anos 50. Mais tarde se soube que os sinais nada tinham de misteriosos e eram produzidos naturalmente por um tipo de corpo celeste conhecido como quasar.
Os mistérios do meteorito ALH84001 são de outra natureza. Em primeiro lugar, porque ele veio mesmo de Marte. Já teria sido uma vitória magnífica da ciência determinar, sem sombra de dúvida, a origem marciana de um pedaço de rocha vulcânica que vagou por 15 milhões de anos no espaço antes de cair na Terra, onde passou 130 séculos soterrado sob a capa de gelo antártico. Meteoritos são pedaços de corpos celestes que andam à deriva pelo cosmo até ser capturados pela força gravitacional da Terra. Um olho treinado de geótopo pode determinar que um meteorito não tem origem terrestre. Identificar, porém, exatamente de onde ele se originou requer mais do que treino.
O ALH84001 pertence a uma classe especial de corpos celestes decaídos. Ele e outros onze meteoritos, um deles encontrado em Governador Valadares, Minas Gerais, em 1958, são inequivocamente pedaços do planeta Marte. (A maior parte do meteorito achado em Minas está hoje em Roma; a outra parte está no Museu Britânico de História Natural.) Os cientistas puderam comprovar isso de duas maneiras. A primeira, e mais exata, foi comparar os dados sobre a atmosfera de Marte _ coletados no planeta vermelho pela sonda americana Viking, em 1976 _ com as amostras de gases contidas em bolhas hermeticamente lacradas que muitos dos meteoritos guardam em seu interior. As bolhas do ALH84001 tinham gases com a mesma composição da atmosfera marciana. A segunda maneira de determinar a origem de um meteorito é examinar a composição química da rocha. Também de acordo com esses exames, o ALH84001 não poderia ter vindo de outro planeta senão de Marte.
Acabam aqui as certezas absolutas. Os demais anúncios feitos pela equipe da Nasa são tão absolutamente revolucionários que mesmo as mentes mais acostumadas com a possibilidade de vida extraterrestre somente os aceitam precedidos de um "se". É o caso do astrônomo Carl Sagan, autor dos livros Cosmos e Pálido Ponto Azul e presidente da Sociedade Planetária, que reúne 100 000 membros em todo o mundo. "Esta é a evidência mais forte já produzida da existência de vida fora do nosso planeta", disse Sagan a VEJA na quinta-feira passada. "Se os resultados se confirmarem, estaremos diante de um raro momento de transição na História da humanidade. A sugestão de que a vida existe não apenas em um mas em dois planetas de um mesmo sistema solar tem conseqüências gigantescas. Isso significaria que há vida abundante espalhada por todo este magnífico universo." Sagan faz um alerta contra o sensacionalismo. "Está óbvio no anúncio da Nasa que ninguém está falando de homenzinhos verdes nem sequer de formas mais complexas de vida. Trata-se aqui de provar a contaminação do meteorito há bilhões de anos por bactérias, seres microscópicos e extremamente simples", diz.
Com diversos graus de certeza, os pesquisadores da Nasa sugerem que a rocha vinda de Marte contém compostos orgânicos e certos cristais de ferro oxidado comumente associados à atividade biológica das bactérias primordiais terrestres. Marte naquela época era bem mais úmido e quente do que agora. A superfície marciana tinha oceanos, lagos e até cachoeiras. A temperatura variava de 30 graus Celsius negativos a 40 graus positivos. Atualmente, Marte só tem água em forma de gelo, nos pólos, e a temperatura média é 40 graus negativos. "A pesquisa da Nasa faz enorme sentido à luz das mais recentes teorias sobre o surgimento da vida", diz Monica Grady, especialista em bactérias fósseis do Museu Britânico de História Natural. Essa nova teoria sugere que a vida deve ter surgido em ambientes sem oxigênio ou luz do Sol, no que se chama de "fontes hidrotermais" submarinas _ redemoinhos de água rica em compostos sulfúricos aquecidos por vulcões. Essa teoria substitui a idéia predominante ensinada na escola secundária de que a vida teria surgido de uma sopa primordial de aminoácidos bombardeada por raios. Ambas são teorias altamente especulativas. A hipótese do "berço hidrotermal" tem a vantagem de tornar o processo de surgimento da vida bem menos complexo e difícil. Ou seja, mesmo planetas hoje considerados inóspitos poderiam exibir alguma forma de vida. Além dos compostos orgânicos, que seriam assinaturas da existência pregressa de vida no meteorito, o time de pesquisadores da Nasa sugeriu que o ALH84001 seria depositário de uma prova ainda mais inequívoca da vida em Marte. De acordo com o artigo dos pesquisadores da Nasa publicado na revista Science que circula nesta semana, algumas das texturas e formas gravadas em rachaduras da rocha esconderiam não apenas anomalias químicas mas as próprias bactérias fossilizadas. "São bactérias do tipo filamento, bastante comuns na Terra. As formas possivelmente presentes no meteorito marciano, no entanto, são de tamanho bem mais reduzido do que suas congêneres terrestres", afirma o artigo.
Os especialistas confrontados com essa passagem do artigo consideram que se trata da parte mais frágil da argumentação de McKay e seus colegas. "Eles quase conseguiram me convencer de que a superfície do meteorito foi mesmo atacada por bactérias ainda em Marte e não depois que ele caiu na Terra. A presença física das bactérias na rocha, no entanto, ainda tem de ser provada", diz William Schopf, especialista em fósseis microscópicos da Universidade da Califórnia, em Los Angeles. Schopf se diz um "otimista cético" com relação às revelações da Nasa, mas sugere aos colegas da agência espacial americana que não dêem o trabalho por terminado. "Muito ainda precisa ser feito para que se considere o caso encerrado", pondera. Entre as provas que Schopf acha necessárias estão novos estudos microscópicos, delicados o bastante para detectar a presença de paredes celulares fósseis gravadas na superfície do meteorito. "Sem paredes celulares capazes de conter os compostos orgânicos a vida não existe", observa. "Se a Nasa quiser mesmo resolver o enigma, ela precisa provar que as paredes celulares estão lá encravadas na rocha marciana."
Feitas todas as avaliações, o sentimento predominante entre a comunidade científica no final da semana passada era que, apesar de toda a pirotecnia, os pesquisadores da Nasa não haviam conseguido marcar um tento. Ou seja, a semana terminou com a opinião pública abastecida por uma caminhão de dados sobre a história geológica de Marte, mas sem que se soubesse ao certo se existiu mesmo vida no planeta vermelho. Se fosse futebol, teria sido um jogo de muitos lances inesquecíveis, diversas bolas na trave, mas nenhum gol: a Nasa convenceu mas não venceu. "Apenas os traços de material orgânico são insuficientes para levantar a hipótese de vida extraterrestre. Já se sabe que tais traços costumam aparecer nas rochas trazidas da Antártida e que permanecem muitos anos nas prateleiras dos laboratórios", diz Ian Franchi, pesquisador da Open University, de Londres. O meteorito ALH84001 ficou doze anos numa prateleira antes de ser estudado pela equipe da Nasa. "Sei que temos de provar a existência de paredes celulares no meteorito e essa é justamente a próxima etapa do nosso experimento", reconheceu David McKay na sexta-feira.
O burburinho provocado pela divulgação da pesquisa da Nasa é fruto também de uma época especial para a ciência, um período em que as descobertas se nutrem da publicidade. "No bucks, no Buck Rogers", diziam os astronautas americanos na década de 60, numa expressão que ficou famosa e significa, mais ou menos: "sem grana, não há heróis do espaço". Os anos 60 marcam o início da perigosa intimidade da ciência e da medicina com a publicidade e, conseqüentemente, com a generosidade das fontes de financiamento. O caso da semana passada é exemplar. A começar pelo título, o artigo original dos pesquisadores da Nasa é feito para ter impacto imediato não sobre a comunidade científica mas sobre o público em geral e a imprensa leiga. O título é "Em busca de vida primitiva em Marte: possíveis relíquias de atividade biogênica no meteorito marciano ALH84001". O bioquímico Fernando Reinach, da Universidade de São Paulo e da Universidade Cornell, acha que os pesquisadores da Nasa poderiam ter dito a mesma coisa de um modo mais contido e mais proveitoso para a comunidade acadêmica. "Quando Francis Crick e James Watson anunciaram nos anos 50 a forma da molécula de DNA, esta sim a descoberta do século, eles não fizeram o menor alarde", lembra Reinach. "O artigo secamente dizia que eles gostariam de sugerir uma forma para o DNA e informava que não lhes passavam despercebidas as implicações biológicas da descoberta. Ponto final. Não falam em desvendar o segredo da vida nem usam expressões mirabolantes."
Certezas e dúvidas
O que os cientistas já têm comprovado sobre o meteorito e o que ainda falta esclarecer
A rocha veio de Marte?
Certeza absoluta. Quando foi achada na Antártida, ela continha encapsuladas amostras da atmosfera marciana que conferem perfeitamente com as medições feitas em Marte em 1970 pela sonda americana Viking.
As marcas são de bactérias?
Quase certeza. Áreas do meteorito estão cobertas por glóbulos de carbonato que podem ou não ter origem biológica. Aparecem no microscópio eletrônico num padrão mais compatível com a vida bacteriana.
As bactérias são de Marte?
Dúvida. A Nasa diz que rachaduras produzidas há milhões de anos separam ao meio os sinais de vida bacteriana. Ou seja, eles seriam anteriores à queda na Terra. Muitos acham a prova inconsistente.
Há bactérias fossilizadas na rocha?
Dúvida total. A Nasa acha que há mais do que sinais do metabolismo bacteriano. Certas texturas seriam as próprias bactérias marcianas fossilizadas. Cientistas independentes não acreditam nisso.
A América do século XXI
A viagem a Marte é a próxima grande aventura
Laurentino Gomes
O que sempre soou como ficção científica está mais perto do que nunca de se realizar. A viagem a Marte é um acontecimento do qual a atual geração será testemunha. "Não acredito que estejamos falando em décadas", arriscou na semana passada Daniel Goldin, diretor da Nasa. "Iremos talvez para lá muito mais rápido do que imaginávamos." Nos próximos nove anos, serão lançadas dez naves não-tripuladas em direção ao planeta vermelho. Como cada uma custará cerca de 300 milhões de dólares, a conta da frota estelar será de 30 bilhões _ mais que a soma dos orçamentos dos ministérios brasileiros da Educação, da Saúde e da Justiça para 1997. É apenas o começo de um projeto de 50 bilhões de dólares, o equivalente ao produto interno bruto do Chile, que culminará com a pegada do primeiro astronauta em solo marciano, no começo do século XXI.
Neste ano, haverá três lançamentos. A nave americana Mars Global Surveyor parte em novembro e permanecerá na órbita do planeta com a missão de mapear a superfície para futuras missões. Depois, segue a russa Mars 96. De todas as três, a mais promissora é a americana Mars Pathfinder. A nave, que decola em dezembro, chegará a Marte em julho do ano que vem. Será o primeiro engenho humano a pousar no planeta depois das americanas Viking, lançadas na década de 70. Leva um pequeno veículo equipado com um braço mecânico e uma caçamba capaz de transportar 2,5 quilos de rochas, poeira e outros detritos para análises nos laboratórios da própria nave.
O que essas naves podem encontrar em Marte? A primeira e mais fascinante possibilidade é comprovar definitivamente a existência de vida fora da Terra. Os cientistas estão convencidos de que a vida em Marte, se existir, está escondida nas profundezas do planeta, na forma de microcadeias biológicas. A segunda possibilidade, mais prática, é concretizar o velho sonho de transformar o planeta na nova fronteira de colonização humana, a América do próximo milênio. Não é só o espírito aventureiro que move os cientistas nessa direção. Criar novas colônias fora da Terra é vital para que a espécie humana sobreviva a futuras catástrofes. Sessenta milhões de anos atrás, o choque de um asteróide com a Terra dizimou a forma mais evoluída de vida até então existente no planeta, os dinossauros. A probabilidade de que isso se repita é muito grande. Há dois meses, um asteróide de 1 quilômetro de diâmetro raspou a Terra, passando a 150 000 quilômetros, pouco mais de um terço da distância até a Lua. Foi descoberto alguns dias antes por dois astrônomos americanos. Se tivesse trombado com a Terra, é possível que boa parte dos seres humanos não teria sobrevivido para ouvir as notícias sobre o meteorito encontrado na Antártida.
Marte é oito vezes menor que a Terra, com uma atmosfera muito mais rala. Em vez de azul, o céu é vermelho, resultado das tempestades de poeira de óxido de ferro que varrem enormes regiões do planeta o tempo todo. Apesar disso, suas características físico-químicas são as que mais se assemelham às terrestres em todo o sistema solar. Por esse motivo, imagina-se que, se um dia a Terra for alvo de alguma trombada cósmica, seria o refúgio natural da espécie humana. No clima de Marte, há pelo menos duas estações bem definidas, inverno e verão. De suas rochas é possível extrair energia, oxigênio e, possivelmente, água do subsolo para cultivar alimentos.
Viajar a Marte é complicado. Demora-se dois anos e meio para cobrir uma distância total de 150 milhões de quilômetros _ 200 vezes o percurso feito pelas naves Apollo na viagem à Lua. A ausência de gravidade numa viagem tão longa pode provocar perda óssea e disfunções psíquicas. Não haveria foguete com capacidade suficiente para ir a Marte e voltar sem reabastecer. Por essa razão, será necessário plantar antes uma usina robotizada na superfície marciana para extrair o combustível da volta. Além disso, não é a qualquer momento que se pode decolar em direção a Marte. É preciso esperar que os dois planetas estejam alinhados e próximos. Isso só ocorre uma vez a cada 26 meses.
As naves não-tripuladas que serão lançadas a partir deste ano têm como objetivo preparar essa incrível jornada e desvendar um mistério. As fotos da hoje árida superfície marciana mostram vestígios de rios, lagos e oceanos por todo o planeta. Essas imagens, coletadas pelas naves Viking e Mariner 9, fazem crer que Marte já foi um Jardim do Éden, um paraíso entre os planetas do sistema solar. Ao contrário da Terra, onde a vida evoluiu gradativamente nos últimos 3,6 bilhões de anos, no entanto, o paraíso marciano teve curta duração. Por alguma razão até hoje desconhecida, os rios e lagos desapareceram por completo. Uma das hipóteses é que uma hecatombe cósmica, provocada pelo choque de um cometa ou um asteróide gigantesco, tivesse feito evaporar a atmosfera original. Outra teoria sugere que a radiação solar a tivesse desbastado lentamente, em bilhões de anos. "Bilhões de anos atrás, Marte já teve um ambiente mais hospitaleiro à vida que a própria Terra", disse recentemente o cientista Norman Sleep, da universidade